É um musical apaixonante, que não envelheceu e já estabelece comunicação com o público logo nos primeiros minutos, quando o ator Fernando Rocha, o Berger da história, tira as calças, invade a platéia e pede dinheiro para algum espectador. Com canções poderosas, como a que abre o espetáculo, Aquarius (A Era de Aquário), trama envolvente, personagens carismáticos, figurinos coloridos e elenco tecnicamente irrepreensível, a mais recente montagem desse texto clássico contagia também por evocar temas que, de alguma forma, continuam presentes hoje, mesmo quase cinco décadas depois de a peça ter sido escrita. Em um mundo convulsionado por conflitos políticos e crises econômicas, o conceito de que vale a pena lutar por ideais de paz e liberdade ainda encontra ressonância na atualidade e sobreviveu praticamente incólume aos efeitos do tempo e às mudanças de hábitos e costumes.
Espécie de símbolo da contracultura, o musical estreou modestamente em 1967 num pequeno teatro americano off-Broadway, ganhou notoriedade por sua irreverência e conteúdo antibelicista e fez pipocar várias montagens pelo mundo. Escrito por dois atores desempregados, Gerome Ragni e James Rado, também letristas da belíssima trilha sonora de autoria do compositor canadense Galt MacDermot, o espetáculo reunia hippies militantes protestando contra o recrutamento militar obrigatório e a Guerra do Vietnã. Pela primeira vez a Broadway estampava o nu no palco – é célebre a controversa cena final do primeiro ato, quando atores cabeludos despidos entoavam Where do I go. No Brasil, em 1969, em plena vigência do regime militar, uma versão dirigida por Ademar Guerra e estrelada pelos então jovens Antônio Fagundes, Ney Latorraca e Sônia Braga só estreou após intensa negociação entre os produtores e a Censura Federal – os atores podiam aparecer nus, mas imóveis e uma única vez, durante no máximo um minuto.
Assinada pela dupla Charles Moeller (direção) e Cláudio Botelho (adaptação), a vibrante e luxuosa montagem em cartaz captura e expressa a carga emocional do roteiro, valorizando o drama, sem perder a alegria e o encanto, de uma história ambientada em Nova York durante a guerra do Vietnã, a descoberta do amor livre e experiências com LSD. O estilo de vida hippie é retratado não como um quadro amarelado, mas como tradução de um ideário. A competência com que Moeller e Botelho abordam o musical tem o visível amparo de uma ótima equipe técnica. Responsável pela cenografia, uma estrutura de ferro com hélices e pé direito alto, Rogério Falcão teceu um ambiente psicodélico que lembra uma fábrica ou galpão abandonado. A inspirada iluminação de Paulo César Medeiros valoriza tanto o conjunto como os detalhes. Marcelo Pies criou um figurino cheio de cores vivas, que abusa de acessórios de época, revelando pesquisa apurada. Elétrica, a coreografia de Alonso Barros é movimentada e persuasiva. Na direção musical e regência da afinada orquestra, Marcelo Castro desenha a consistente moldura sonora.
O mesmo rigor é observado na seleção dos belos intérpretes, preparados para atuar, cantar e dançar, o que fazem com vigor, energia e motivação. Tipos e personagens estão plenamente ajustados e sintonizados. Embora a força do grupo prevaleça, é preciso destacar os protagonistas. Hugo Bonemer, que faz Claude, o hippie alistado para a guerra do Vietnã, compõe com charme e habilidade esse personagem dividido entre a tribo e as pressões familiares – ele se destaca na cena em que, embalado pelo ácido, canta I Got Life (Tenho Mais Vida). Líder do grupo e principal contestador da convocação do amigo, Fernando Rocha dá vida a Berger com ímpeto e virilidade. Na pele da grávida Jeanie, Kiara Sasso foge da caricatura e imprime graça e humor ao papel – recentemente vista em Mamma Mia!, é uma das atrizes mais bem aquinhoadas do cenário musical brasileiro. De bela voz, Carol Puntel mergulha de forma sensível no corpo da idealista Sheila. Reynaldo Machado talha Hud , de perfil black power, com autoridade. Como a hipócrita Margaret Mead, que observa os hippies como se visitasse um zoológico, Davi Guilherme brilha ao executar My Conviction (Estou Convicta). Aplaudida no solo Frank Mills, Estrela Blanco incorpora a adorável Crissy e é um talento a se acompanhar. Juliana Peppi, a Dionne, arrebata ao final do espetáculo, ao soltar o vozeirão que demarca a interpretação coletiva de Let the Sunshine in (Deixe o Sol Entrar). Há quem encare a montagem como datada, desdenhando do fato de que a mensagem de liberdade e tolerância da peça não perdeu sua validade. A estética hippie até foi parar nas butiques da moda, porém ainda desafiamos e repudiamos o autoritarismo, a hipocrisia e as arbitrariedades. Com sua doutrina de paz e amor, o texto tem um apelo que transcende épocas e a passagem do tempo só reafirmou a sua importância. A liberdade não é mais um jeans rasgado, mas ainda veste bem.
(Vinicio Angelici - viniange@ig.com.br)
1 comment:
Kiara,
primeiro quero deixar meus parabéns pela excelente profissional que voce é, imprimindo nos seus trabalhos uma qualidade ímpar que cativa tanto seus fãs e os que ainda não a conhecem.
Tive a oportunidade de assistir Hair na estréia aqui em Sampa e voltar na semana seguinte, levando mãe e 2 tias.
É uma peça linda, de alto astral, vibrante, que faz com que queiramos participar juntos de vocês, cantando, batendo palmas, dançando juntos.
Posso dizer que saí muito bem e feliz do teatro, e fui para casa cantando as músicas da peça.
Que outros possam abrir suas janelas, mente, coração, para deixar o sol entrar.
Ainda mais vindo de uma piradinha linda como a Jeanie.
Muito tempo bom na duranção do Hair aqui em São Paulo.
Abraços
Rodrigo
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